O Leigo e o Crítico



RR, 2009, Natureza-morta 1, esferográfica sobre papel

Editorial 2: o desenho de uma existência


Este fanzine é um trabalho desenvolvido para a disciplina Práticas de Desenho 2 (2009), como Estudos Independentes, do Mestrado de Estudos Artísticos. O objectivo inicial sofreu algumas alterações. O nome deste blog, algo provocativo, ganhou um peso menor do que o previsto, o que é um alívio, ao permitir discorrer sobre outros assuntos para além da natureza-morta, conforme previsto desde o início: assim como os jornais The Sun, e O SOL (na versão lusa), não tratam apenas do sol e das estrelas.
O tema natureza-morta é um fio condutor tratado em diversos momentos com conteúdos específicos acerca do tema.

Inicialmente eram previstas edições impressas, mas somente o protótipo inicial foi lançado, ficando assim este trabalho em suporte digital, num blog na internet, de acordo com sugestão do professor Jorge Marques, coerente com o perfil jornalístico desta criação.

Foi incluído neste trabalho uma carga autobiográfica, como forma de resgatar meu espírito artístico, abalado pelo afastamento da cidade onde sou mais claramente reconhecido, São Paulo. Assim apresento o meu historial com fanzines, e meu envolvimento em assuntos da sociedade portuguesa, algo particularmente interessante, visto que ainda não sou português. Nesta matéria tenho usado meu inconformismo para ganhar motivação. A partir de Novembro 2009 poderei pedir minha nova nacionalidade, então estarei melhor equipado para uma camuflagem mais eficiente, e representar Portugal da melhor forma.

O Palhaço Leigo (foto de Marcos Vilas Boas), foi um personagem de banda desenhada inventado por mim em 2000. Ele representa o senso comum, o eterno assistente, aquele que quer ser um artista, ou um curador, ele quer ser tudo. Em 2002, eu comecei a estudar a técnica do clown e lancei a performance do Palhaço Leigo. O Leigo saiu do papel, e ganhou carne e osso. O desenho então não é apenas uma técnica, é uma acção, que pode ou não estar no papel.

Como fazer uma Natureza-Morta?

Uma natureza-morta pode ser feita de várias formas, neste caso foi utilizada uma lâmpada para dar definição ao sombreamento. (foto: RR). Um anteparo branco foi colocado atrás da composição para limpar a transparência da garrafa e do cálice. A falta do fundo branco provocaria uma dificuldade adicional no desenho dos vidros, além disto o fundo branco define a mancha de luz que ilumina as peças por trás. Na mesa podemos notar o desenho numa fase inicial. A composição de uma natureza-morta frequentemente é bastante produzida, ao pormenor, com a escolha das frutas, formatos de garrafas, e louças. As frutas e o vinho dão um certa sensação de fartura, o que permite uma apreciação mais positiva do desenho.

Repertório RR de fanzines: desde 1993


1) Periódicoimbra: meu primeiro Fanzine publicado regularmente em 1993, eu ainda não era artista. Este fanzine era a contracapa de um cardápio de um bar que eu gerenciava em São Paulo.
2) Como se Tornar Um Artista foi uma revista com tratamento de gravura numerada, publicado em 1999, com tiragem de 28 exemplares. Os desenhos originais foram expostos na Galeria Baró Senna e foram vendidos a um coleccionador na altura.
3) Fanzinemam, foi uma peça da exposição São Ou Nâo São Gravuras, com curadoria de Ricardo Resende. A exposição tratava de uma noção ampla de gravuras a incluir múltiplos e peças únicas. O Fanzinemam foi apresentado como exemplode trabalho em fotocópia, e foi enviado pelo correio a duas mil pessoas do mailing do Museu.
4) As pequenas revistas são fanzines de 2003, entretanto até hoje são inéditos. Cada edição tem um tema, no caso "O Artista e o Coleccionador" e "O Marchand e o Curador".
5) Este fanzine era originalmente um catálogo da exposição de minha curadoria entitulada Pintura versus Fotografia, onde eu inclui banda desenhada, o que causou uma longa discussão com a directora da instituição que acabou por ceder a inclusão dos desenhos.
6) Fanzine impresso em papel Natureza-Morta Bem Morta, 2009, agora nesta versão online.
(foto: RR)

Este blog contém:

-Dois Editoriais.
-Nove páginas de banda desenhada (sendo um cartoon).
-Quatro desenhos de natureza-morta.
-Quatro artigos sobre natureza-morta.
-Cinco artigos sobre outros assuntos.
-Sete fotografias de minha autoria.
-Duas entrevistas.
-E mais.

A imortalidade em duas páginas




Desenhos de RR no Brasil


A banda desenhada apresentada neste blog, incluindo o desenho de natureza-morta em esferográfica, participará de uma exposição numa casa em São Paulo. A casa estava desocupada e está a ser preparada para o evento. Inaugura dia 4 de Julho. No Brasil a expressão "elefante branco" significa algo inútil, ou seja algo incomum e com características desnecessárias. Exemplo no contexto português: "o pavilhão do Palácio de Cristal é um elefante branco".

Curiosamente o artista Ricardo Ramalho foi convidado como "pensador", e o organizador Túlio Tavares havia pedido explicitamente a realização de bandas desenhadas para o evento, cujo conteúdo deveria abordar a questão da crítica de arte.

Momento autobiográfico: arte e vida

Questões biográficas são recorrentes na produção de arte contemporânea. Se no modernismo haviam grandes questões comuns (programas transnacionais), no pós-modernismo isto ja não acontece: cada artista apresenta um programa particular, com frequência ligado a sua tragetória pessoal, o repertório de sua região, questões sociopolíticas, visões da arte e conceitos muito associados ao autor.

Este blog tem então elementos autobiográficos, como manifestação artística. Procuro sempre associar minha produção de arte a uma prática real no quotidiano. Na manchete acima vemos um exemplo de um assunto que tenho coleccionado: a falta de apoio aos estudantes universitários. Uma das coisas que me consolam em Portugal é perceber que a vida não é apenas árida para mim, estrangeiro, mas para todos os portugueses. Neste semestre enfrentei uma batalha burocrática para obter uma bolsa, com muitas diligências nos mais diversos orgão universitários, e pedidos de revisão do processo, foi oficialmente recusada, em carta recebida em Junho, após um ano inteiro do pedido.

Dia 25 de Junho 2009 o jornal Meia Hora divulga a notícia da imagem: estudantes portugueses de doutorado no estrangeiro sem bolsa há sete meses. Lembrar que dia 1 de Abril de 2009, pelo mesmo motivo, os estudantes das Belas Artes ocuparam a Faculdade após protesto em frente a Reitoria, com bons artigos publicados no Jornal de Notícias e Público no dia seguinte (foto de Ricardo Ramalho). A manifestação dos estudantes, mesmo com uma adesão considerável, recebeu a dose habitual de indiferença e incompreensão dentro do ambiente académico. Fica assim explicada a iminente falência financeira das universidades: o empenho no desenvolvimento deste setor em Portugal está muito raro, o que gera enorme preocupação sobre o futuro do país.

Um outro tema que reflete meu envolvimento com questões portuguesas são minhas cartas que são publicadas no Jornal de Notícias com alguma regularidade. Uma delas é tema de campanha deste blog, em nome da Regionalização. A carta ja diz tudo e foi publicada dia 14 de Março de 2009.

Desta forma procuro exercitar alguma conscientização política acerca de temas que afetam directamente a performance cultural de Portugal, e consequentemente o meio onde pretendo trabalhar.

A técnica é uma opção poética


Vejamos ao lado duas situações experimentais, dois desenhos iguais feitos com as ferramentas de desenho tosco, do Word (Microsoft Office). (Aliás, os personagens de banda desenhada mostrados neste blog também foram feitos originalmente no Word).

Nesta composição, de garrafa e frutas, só foram usadas "Autoformas", ou seja, formas padrões do Word, cilindros, elipses, meias-luas, retângulos e círculos: não existe uma única linha desenhada manualmente, não existe edição de "pontos de ancoragem", todas as formas são brutas.

No desenho de cima foram usados sombreamentos e efeitos de textura. No desenho abaixo o sombreamento é feito com hachuras variadas e sobrepostas.

Note que o desenho de cima parece mais realista entretanto possui mais artificialidade, o que confere alguma pobreza na composição. No desenho de baixo a sobreposição de linhas simples cria uma malha estilizada, que traz leveza e sugere algum conceito ao trabalho. Neste caso a limitação dos estilos de hachura provoca um contraste deficiente no sombreamento, e a expressividade da composição ressente-se.

A lado direito vemos um outro experimento: as hachuras manuais foram digitalizadas e inseridas em layers no photoshop. Neste caso o plano era criar um banco de hachuras digital, que pudesse ser implantado sobre qualquer tipo de desenho, entretando a escala da rachura ainda não está ideal. O processo revelou-se útil para agilizar o sombreamento e ainda está em fase de aperfeiçoamento. A união de um desenho manual digitalizado, com uma hachura manual digitalizada parecem ser um caminho interessante.

Saga completa em duas páginas

Bandas desenhadas Junho 2009

Entrevista com o crítico Guy Amado, especial para o Natureza-Morta Bem Morta

"Prezado Ramalho, antes de tudo felicitações e desde já vida longa ao Natureza Morta!

Aí vão minhas respostas."

1) Fale sobre seus trabalhos mais recentes e relevantes como crítico de arte em São Paulo. (textos publicados, seleções, Rumos, Centro Cultural, grupos, e outras participações)

Mais recentes: a atuação no Rumos Artes Visuais 2008-2009, para o ItaúCultural [como prestador de serviços, não como "funcionário", atenção], onde exerci uma estranha combinação de funções por cerca de 10 meses: coordenador de mesas de debates [em 19 capitais brasileiras], relator das viagens envolvendo esses eventos e uma espécie de pré-editor dos textos a serem confeccionados para o catálogo deste Rumos pelos curadores e seus assistentes. Haverá também um ensaio meu neste mesmo catálogo.

De resto, o usual: textos diversos ["crítica de arte" ou nem tanto] para mostras em galerias e museus, colaborações esporádicas para revistas e sítios eletrônicos, etc. Também tenho participado de algumas mesas-redondas envolvendo arte contemporânea aqui e ali.

E, paralelamente, venho atuando desde 2007 como professor/orientador para grupos de artistas que acompanho juntamente com Juliana Monachesi no EDEN [Espaço de Experimentação N° 343], no que chamamos acompanhamento de processo artístico – um misto de teoria e prática sem exatamente "aulas".
Atualmente estou com uma curadoria em andamento em Florianópolis [a ocorrer em maio], e mais dois projetos curatoriais ainda em processo de aprovação – um deles de grande porte, para o Sesc.

2) Fale como vai o circuito artístico em São Paulo atualmente, em termos de programação de exposições e "produção de crítica de arte".


Bem, como sabes, falar sobre "o circuito artístico em São Paulo" pode ser um tanto quanto relativo...é muito vasto, e comporta vários "sub-segmentos". A última edição da Bienal de SP [a "do vazio"] gerou um bocado de polêmica, como previsto, e pouca discussão séria.

Algumas boas exposições sempre há, claro, de toda espécie. Mas uma particularmente me marcou como há muito não acontecia: a mostra "Cinema Sim", que esteve em cartaz no ItaúCultural de novembro último a janeiro de 2009. Uma mostra excepcional, enfocando as aproximações do cinema com a arte contemporânea [ou vice-versa] com sensibilidade e qualidade raras. Articulava diálogos surpreendentes entre trabalhos díspares [de artistas brasileiros e internacionais de porte], apostando numa acepção ampliada de "cinema", produzindo momentos de verdadeiro encantamento, sem abrir mão de uma instância reflexiva. Tudo que a boa arte deveria ter.

Por outro lado, está em cartaz a mostra Nova Arte Nova, projeto do CCBB para comemorar seu aniversário reunindo mais de 60 artistas brasileiros da "nova geração" [aspas necessárias pela relatividade implícita na expressão] e que é um verdadeiro balaio de gatos, com uma suposta curadoria que não se percebe. E com uma "amostragem carioca" no mínimo questionável no quesito qualidade e quantidade – sobretudo quando se sabe que o curador, Paulo Venâncio [filósofo, crítico e historiador de arte respeitado], é de lá. É um dado relevante na medida em que se trata de uma mostra que diretamente ou não está apresentando, ou "lançando" [porque legitimando sob o mote do "novo"] toda uma produção que será procurada pelo mercado, sempre ávido pelo suposto "novo".

E a montagem [cá em Sampa] é inevitavelmente desastrosa, em grande parte pelo próprio espaço do CCBB.

Da crítica de arte, a cena ainda é marcada pela influência de alguns grandes críticos formalistas ["modernistas"] mais velhos e importantes como o citado Rodrigo e o Alberto Tassinari...e outros "intermediários", como o Agnaldo Farias [este nem tão crítico, mais curador], a Sonia Salsztein [mais "acadêmica"], etc. Mas há também diversos críticos jovens, vários deles de minha convivência pessoal e de formações e valores estéticos bastante díspares – o que não é mal. Mas ainda poucos para a dimensão do meio de arte que temos, a meu ver. Seguimos nos ressentindo bastante – no país - de publicações regulares/periódicos de arte [de crítica] que não sejam os de perfil e circulação estritamente acadêmicos.

3) Quais seriam os seus autores de crítica de arte, brasileiros ou não, que recomenda para leitura, ou tem chamado mais sua atenção.

No Brasil, gosto imenso do Luiz Camillo Osório [do Rio]. Um raro caso de crítico de arte em atividade como tal, além de atuar como curador e professor universitário. Seu livrinho Razões da crítica, apesar do porte modesto, se mostra tristemente essencial em um país em que quase não se encontra escritos sobre a crítica de arte.

O bom e velho Rodrigo Naves é outra figura que considero referencial pela postura ética rigorosa e lucidez, mesmo que [voluntariamente] meio "retirado" do circuito artístico em função do que vê como certo desencanto em relação ao "estado atual da arte contemporânea". Ainda que eu discorde de quase tudo que ele advoga atualmente [em relação ao tal "estado da arte"], segue sendo uma inspiração pela inteligência, coerência e rigor em tomar posicionamentos públicos. E tenho lido também as coisas recentes do Arthur Danto, o Hans Belting...

4) Em 2007 você passou um bom tempo em Lisboa e passou pelo Porto. Qual sua impressão sobre o circuito artístico português?

Olha, tive muito boa impressão do cenário artístico português. Mesmo. Tanto no Porto quanto em Lisboa, surpreendi-me com a quantidade e qualidade de galerias [mesmo que de perfis e portes diversos] em atividade, bem como com a estrutura de espaços institucionais como a Gulbenkian e a Serralves, sempre impressionantes. Sobretudo no Porto, com aquela "concentração de galerias", uma experiência saborosamente inusitada.

Não pude tecer impressões mais precisas acerca de como anda o mercado de arte português, mas a impressão é de que há uma movimentação considerável, bem como artistas, jovens sobretudo, de qualidade – para além daqueles mais conhecidos, como Cabrita-Reis, Molder e Sarmento. O Pedro Croft [embora fique num grupo "intermediário", já tendo ganho algum destaque], é um de que gosto bastante. Tb gostei de coisas do Pedro Portugal, um niilismo sofisticado que me interessou. Bem como um menino que vi no Porto muito bom e que não me recordo o nome, que tem uma pintura bastante refinada, fazendo uma espécie de "pop pós-moderno" que me pareceu de bastante qualidade.

5) Nos mestrados da Faculdade de Belas Artes do Porto existe um aparente e entranho divórcio entre a turma de curadoria e a turma de crítica de arte. A primeira turma tem um perfil mais pé-no-chão (pés-assentes-na-terra), ja a segunda, tem um estilo altivo do tipo "não-somos-carregadores-de-quadros" (mesmo que sejam: alguns deles são gestores de exposições fora da Faculdade). Pergunta: qual a real repercussão da crítica de arte no circuito cultural, visto que são os curadores quem normalmente determinam a programação? Como você vê a relação entre curadoria e crítica?

Achei divertidamente peculiar tua descrição dos tais "grupos", eheheh. Pessoalmente, não vejo nenhuma "questão" real efetiva nessa discussão "crítica X curadoria"... A meu ver, trata-se de funções, ou metiês efetivamente distintos mas não auto-excludentes - absolutamente. Em última análise, penso que um crítico pode ser um bom curador sem problemas, embora o contrário já não seja tão natural. Há somente que saber distinguir tais funções, e trafegar em ambas, se for o caso, observando os necessários cuidados éticos. Eu mesmo atuo quase full-time como crítico [ou "escriba das artes", como às vezes prefiro] mas não me furto a eventualmente me aventurar em algumas curadorias – isso quando acho ou constato que realmente tenho condições de realizar o que considero uma "curadoria", e não simplesmente uma "exposição" – mas essa é outra discussão.

6) Cite exemplos de três tipos de artistas internacionais: os muito bons, os de conceitos nebulosos, e os duvidosos.

Bem, tua pergunta implicita o gosto pessoal, não? E sendo assim, e mesmo tendo minhas ressalvas com essas "categorias" que me impingiste, lá vai:

- "muito bons ": Cildo Meireles, Tony Cragg, Chris Burden, Iran do Espírito Santo, G. Richter, Jenny Holzer, Richard Prince, Olafur Eliasson e vários outros

- "conceitos nebulosos": Thomas Hirschhorn, Matthew Barney

- "duvidosos": aqui caberia uma relação bem mais longa... mas vou me ater só ao Vik Muniz e a alguns fotógrafos-de-fotografias-imensas-e-muito-impressionantemente-ampliadas, if you know what I mean.

7) Se quiser use esta pergunta para colocar algo que queira.

Me interessaria discutir mais a fundo vários outros tópicos, como a noção de curadoria tal como circula hoje [uma distinção entre curadoria e "curadorismos"], o espaço e o estatuto real da crítica de arte hoje, a tendência espetacular/monumental de parte da arte contemporânea... mas não agora.

Abraço e nos falamos,

Guy